A responsabilidade civil por ato lícito na doutrina legal do Brasil

Por: Eleazar J. Isava – Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Roraima – UERR

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata sobre a responsabilidade civil por ato lícito. Como explica Carlos Roberto Gonçalves (2012), a responsabilidade civil nasce em decorrência de uma conduta que causa prejuízos a outrem, ou da simples inobediência a um preceito legal. Também Sergio Cavalieri Filho (2009, p. 2), argumenta: “responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico […], porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida”.

São apresentados aqui alguns dos múltiplos fatores estruturantes da responsabilidade civil, entre estes: as fontes, os elementos e o efeito de sua reparação. Será mostrado porque a principal função da responsabilidade civil é a reparação do dano, visando recuperar a estabilização moral e patrimonial daquele que foi afetado.

O artigo busca definir os seguintes elementos teóricos:

a) os aspectos gerais da responsabilidade civil;

b) os elementos da responsabilidade civil;

c) as causas excludentes da responsabilidade civil subjetiva;

d) a responsabilidade civil por atos lícitos;

e) a responsabilidade civil por ato lícito na esfera pública e;

d) a responsabilidade civil por ato lícito em estado de necessidade, legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal.

O problema que motiva e inspira esta pesquisa é querer saber como a falta de enfoque doutrinário e acadêmico, acerca da responsabilidade civil por ato lícito, gera prejuízos ao Direito, como ciência, e porque dificulta a resolução de conflitos sociais. Também, este estudo justifica-se, pelo fato de existir necessidade bibliográfica e referencial que explique melhor tudo o relacionado com a responsabilidade civil.

Este artigo tem suma relevância social, já que a sociedade é a principal beneficiada pelo crescimento de produções acadêmicas sobre o assunto. Anseia-se, dessa forma, promover o pensamento crítico do leitor acerca das concepções que existem sobre a matéria da responsabilidade civil. Pretende-se, dessa forma, contribuir com o aprimoramento da ciência do Direito, mediante a produção acadêmica, fortalecendo o conhecimento na área do Direito Civil.

A compreensão da responsabilidade civil por ato lícito é de grande relevância, considerando que a maioria dos autores tratam o tema em sentido inverso, isto é, falam mais sobre a responsabilidade civil por ato ilícito que por ato lícito, já que, aparentemente, uma é mais fácil de definir que a outra.

Para poder atingir as ideias propostas, este artigo tem como objetivo geral analisar, de forma genérica, os aspectos teóricos relacionados com a responsabilidade civil por ato lícito. Agora, quanto aos objetivos específicos, são considerados os seguintes pontos:

1.º) apresentar de forma simples a noção jurídica e os aspectos gerais da responsabilidade civil;

2.º) definir a temática da responsabilidade civil por atos lícitos, apresentando exemplos concretos que permitam ilustrar a matéria em pauta e;

3.º) mostrar por que e de que forma a falta de enfoque doutrinário e acadêmico, acerca da responsabilidade civil por ato lícito, gera prejuízos ao Direito e à resolução de conflitos da sociedade.

Quanto à metodologia da pesquisa, este artigo está sustentado na análise bibliográfica e referencial, incluindo artigos, doutrinas e legislação pertinentes. O objeto da pesquisa é a doutrina brasileira, no relativo à responsabilidade civil. Quanto à viabilidade da pesquisa, esta apresentou certas dificuldades para a coleta de informação, devido à existência de pouco material bibliográfico e doutrinário que tratem o assunto desde o ângulo do ato lícito da responsabilidade civil.

O método de estudo empregado neste artigo é o dedutivo. Neste sentido, Marconi e Lakatos (2018, p. 107) explicam que o método dedutivo “parte de teorias e leis para predizer a ocorrência dos fenômenos particulares”.

Estrutura-se o conhecimento através de uma cadeia de raciocínio, partindo de uma análise geral do fenômeno, no presente caso, a responsabilidade civil, passando por um estudo mais aprofundado da matéria, quer dizer, os atos lícitos, chegando, finalmente à resposta da dúvida em questão.

Portanto, esclarece-se nesta pesquisa de que forma a falta de enfoque doutrinário e acadêmico, acerca da responsabilidade civil por ato lícito, prejudica o Direito e porque interfere negativamente na resolução de conflitos da sociedade.

1. ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Antes de analisar o tema central da problemática do presente artigo, é necessário introduzir os pontos principais acerca da responsabilidade civil. Logo, para melhor compreensão do tema, devemos nos atentar ao significado do termo responsabilidade, que deriva do vocábulo verbal latino respondere, com o sentido de “responder”, “replicar”. 

Nesse respeito, entende-se por “responsabilidade” o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico. É a obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa; de ressarcir ou reparar danos ou prejuízos causados injustamente a outrem. Dada obrigação quase sempre acarreta um ônus ao agente do dano, mediante indenização que pode recair sobre o sujeito passivo da relação originária ou sobre algum terceiro (CAVALIERI FILHO, 2008).

A responsabilidade civil é decorrente da violação de um dever jurídico, que, na maioria das vezes, acarreta dano a outrem, gerando um novo dever jurídico: o de reparar o dano.  Assim, é fundamental analisar o disposto no Código Civil Brasileiro – CCB, a respeito do ato ilícito e a obrigação de indenizar. Sobre a função da responsabilidade civil, o prof. Sérgio Cavalieri Filho reflete:

O anseio de obrigar o agente, causador do dano, a repara-lo inspira-se no mais elementar sentimento de justiça. O dano causado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre o agente e a vítima, surgindo uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilíbrio, o que se procura fazer recolocando o prejudicado no “status quo ante” (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 12).

A responsabilidade civil atua na maioria das vezes a partir do ato ilícito, com o surgimento da obrigação de indenizar, com intuito de colocar a vítima no estado em que estaria, caso o fato não houvesse ocorrido (CAVALIERI FILHO, 2003). Todavia, nem sempre a responsabilização será advinda de um fato ilícito, em ocasiões específicas, o fato gerador da responsabilidade poderá ser um fato lícito. A lei, então, deve estabelecer a caracterização do fato gerador como ensejador ou não da responsabilização.

O art. 186 do Código Civil (Lei n° 10.406/2002) consagra uma regra universalmente aceita: a de que todo aquele que causa danos a outrem é obrigado a repará-lo. Estabelece o aludido dispositivo legal que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002, art. 186).

“Conduta” é a exteriorização da vontade humana. Deve ser voluntária, no sentido de ser controlável pela vontade do agente, sendo excluídos os atos praticados sob coação absoluta, em estado de inconsciência ou por provocação de fatos invencíveis como tempestades, naufrágios, terremotos, inundação etc. (GONÇALVES, 2012).         

“Dano” é a subtração ou a diminuição de um bem jurídico. O dano pode ser patrimonial ou moral, dependendo se tem como consequência a lesão a um bem corpóreo ou incorpóreo. O dano pode gerar um prejuízo material ou imaterial, a depender se a consequência está no patrimônio ou na esfera abstrata dos sentimentos (GONÇALVES, 2012).

O “dano material” se divide em prejuízo emergente e lucro cessante. “Prejuízo emergente” é o prejuízo diretamente advindo do fato delituoso; os lucros cessantes são as consequências econômicas decorrentes do dano. (GONÇALVES, 2012)

Dessa forma, ainda que haja violação de um dever jurídico, e ainda que tenha havido culpa, ou até mesmo dolo por parte do infrator, nenhuma indenização será devida uma vez que não se tenha verificado prejuízo a um terceiro (vítima). Para reforçar o pensamento, Sergio Cavalieri Filho salienta a importância do dano na Responsabilidade Civil:

O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil. Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano. Na responsabilidade objetiva, qualquer que seja a modalidade do risco que lhe sirva de fundamento — risco profissional, risco proveito, risco criado etc. —, o dano constitui o seu elemento preponderante. Tanto é assim que, sem dano, não haverá o que reparar, ainda que a conduta tenha sido culposa ou até dolosa (CAVALIERI FILHO, 2000, p. 70). 

Por outro lado, o nexo causal é uma relação de causa e efeito que liga determinada conduta a um determinado resultado. Sem ela, não existe a obrigação de indenizar. Se houve o dano, mas sua causa não está relacionada com o comportamento do agente, inexiste a relação de causalidade e a obrigação de indenizar. Citando Sergio Cavalieri Filho:

Não basta, portanto, que o agente tenha praticado uma conduta ilícita; tampouco que a vítima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente, que exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito. Em síntese, é necessário que o ato ilícito seja a causa do dano, que o prejuízo sofrido pela vítima seja resultado desse ato, sem o que a responsabilidade não correrá a cargo do autor material do fato. Daí a relevância do chamado nexo causal. Cuida-se, então, de saber que um determinado resultado é imputável ao agente; que relação deve existir entre o dano e o fato para que este, sob a ótica do Direito, possa ser considerado causa daquele (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 74).

Para Gustavo Tepedino e Gisela Sampaio, três são as teorias existentes mais discutidas quanto à determinação do nexo causal:

a) teoria da equivalência dos antecedentes (ou teoria sine qua non)

b) teoria da causalidade adequada e

c) teoria do dano direto e imediato

A “teoria da equivalência dos antecedentes” preconiza que qualquer pessoa ou fato direta ou indiretamente relacionado ao resultado adentra a cadeia causal. Dessa forma, pegando como exemplo uma batida entre dois veículos, o agente causador do fato seria responsabilizado pelo fato, assim como seus pais que o geraram, seus avôs que geraram os pais deste e assim sucessivamente.

Para a “teoria da causalidade adequada”, somente o fato ou os fatos relevantes para o evento danoso geram a responsabilidade civil e o consequente dever de reparar o dano. Utilizando o mesmo exemplo da batida entre os veículos, somente o agente causador do fato seria responsabilizado pelos danos causados.

A teoria da causalidade adequada parece ser a que mais prevalece no Brasil, a respeito do nexo de causalidade. Na teoria do dano direto e imediato, somente devem ser reparados os danos que decorrem de efeitos necessários da conduta do agente, admitindo-se que atos alheios, de terceiros ou da própria vítima, obstem o nexo de causalidade.

A “culpa” é a qualificação da conduta ilícita. Ressalta-se que a culpa não é um elemento da responsabilidade civil objetiva (ou aquiliana), que dispensa a verificação dela por parte do agente causador do fato danoso, estando presente apenas na responsabilidade civil subjetiva.

No direito civil, “culpa” significa por causa de. Assim, basta que alguém dê caso a algo, seja de forma voluntária, seja involuntária, para que tenha agido com culpa. Logo, culpa lato sensu (sentido amplo) é um gênero, da qual são espécies a culpa estricto sensu (sentido estrito) e o dolo.

“Culpa em sentido estrito” é o ato praticado sem os deveres objetivos de cuidado, tendo essa culpa como modalidades a Negligência (fazer menos do que deveria fazer), a Imprudência (fazer mais do que deveria fazer) ou Imperícia (ausência de técnica em arte, ofício ou profissão).

Nas palavras de Flávio Tartuce (2017, p. 521) “a culpa pode ser conceituada como o desrespeito a um dever preexistente, não havendo propriamente uma intenção de violar o dever jurídico, que acaba sendo violado por outro tipo de conduta”. O dolo seria o inverso, consistindo na vontade de cometer uma violação de direito; é a violação deliberada, consciente, intencional do dever jurídico.

2. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR ATOS LÍCITOS

O Código Civil Brasileiro apresenta algumas situações em que há a incidência de responsabilidade civil por ato lícito na esfera privada no que concerne aos direitos de vizinhança: Da passagem de cabos e tubulações, do direito de construir e da passagem forçada. Além disso, também explanaremos sobre a desapropriação, inserida na esfera pública.

O CC/2002, no que concerne aos direitos de vizinhança, protege ambas as partes. O art. 1.286 dispõe que, em casos em que for extremamente necessário a passagem de cabos e tubulações através do prédio vizinho, este será constrangido a aceitar tal atividade em sua propriedade, mediante indenização que venha a compensar a desvalorização da área.

Por outro lado, o Código Civil também concede ao proprietário prejudicado a faculdade de exigir que tais obras sejam realizadas de maneira menos danosa e de exigir que venha a ser executada com segurança. Diz o CC/2002: “Art. 1.287. Se as instalações oferecerem grave risco, será facultado ao proprietário do prédio onerado exigir a realização de obras de segurança”.

O vigente Código Civil/2002 classifica como um dos vários Direitos Reais a propriedade: “Art. 1.225. São direitos reais: I – a propriedade”. Assim também, a propriedade é tratada pela Constituição Federal como um direito fundamental.

No âmbito de direitos reais, mais precisamente no direito de construir, respaldado pelo CC/2002 em seu art. 1.313, podemos ter como exemplo um ato praticado dentro dos parâmetros legais, mas que, porventura, poderá acarretar a obrigação de ressarcimento.

O art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para:

I – dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório;

II – apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente (BRASIL,10.406, 2002).

O parágrafo 3º do art. 1.313 do CC/2002 assegura: “III – se do exercício direito assegurado neste artigo provier dano, terá o prejudicado direito ao ressarcimento” (BRASIL, Lei n. 10.406, 2002). Dessa forma, podemos compreender que a responsabilidade civil não está necessariamente interligada apenas a atos ilícitos. Como afirma Pablo Stolze & Pamplona Filho (2017, p. 878) “poderá haver responsabilidade civil sem necessariamente haver antijuridicidade, ainda que excepcionalmente, por força de norma legal”.

No caso da passagem forçada, ela tem fundamento no direito do proprietário de imóvel sem acesso à via pública. Este deve buscar acesso, seja constrangendo o vizinho a lhe conceder a passagem, seja por meio de pagamento de indenização, ou pela judicialização do caso, se for necessário. Segundo Stolze e Pamplona Filho:

No caso da passagem forçada, o dono do prédio encravado sem acesso à via pública, nascente ou porto, tem o direito de constranger o vizinho a lhe dar passagem, mediante o pagamento de indenização cabal (art. 1.285, CC/2002). Nesse caso, verifica-se que o vizinho constrangido poderá responsabilizar civilmente o beneficiário do caminho, exigindo a indenização cabível, mediante o ajuizamento de ação ordinária, se não houver solução amigável (Stolze e Pamplona Filho, 2017, p. 79).

 O mencionado instituto possui expressa previsão legal no art. 1.285, do Código Civil vigente:

Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.

§ 1º Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem.

§ 2º Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a passagem.

§ 3º Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra (BRASIL, 10.406, 2002).

Como podemos ver na transcrição do diploma legal acima, no capítulo V do Código Civil, que versa sobre o direito de vizinhança, fica claro o interesse social do instituto, especialmente pela hermenêutica constitucional que preconiza a “função social da propriedade”. Isto é resultado da fundamentação de que não pode um prédio perder a sua finalidade e valor econômico por ausência de acesso à via pública.

Nesse sentido, é importante esclarecer a diferença entre a “servidão” – que é um direito real sobre coisa alheia – e a “passagem forçada” – que é uma limitação ao direito de propriedade que decorre do interesse público do direito de vizinhança, logo, uma imposição da solidariedade entre os vizinhos.

Sobre o assunto, esclarece Luiz Antônio Scavone Filho:

Não se trata de servidão, que é um direito real sobre coisa alheia em razão de negócio jurídico e comodidade do imóvel dominante. Diferente disso, a passagem forçada é limitação ao direito de propriedade, decorrência das normas que tratam da vizinhança e de decisão judicial, sempre pelo modo menos gravoso (SCAVONE FILHO, 2012, p. 805).

Flávio Tartuce segue o seguinte raciocínio:

A encerrar o presente tópico, cumpre confrontar a servidão com institutos afins. Inicialmente, repise-se que a servidão não se confunde com a passagem forçada. A servidão é facultativa, não sendo obrigatório o pagamento de uma indenização. A passagem forçada é compulsória, assim como é o pagamento da indenização. A servidão é direito real de gozo ou fruição. A passagem forçada é instituto de direito de vizinhança, presente somente na situação em que o imóvel encravado não tem saída para a via pública (art. 1.285 do CC/2002).

A servidão envolve os imóveis dominante e serviente; na passagem forçada estão presentes o imóvel encravado e o serviente. Na servidão cabe a citada ação confessória; na passagem forçada, para a defesa do direito, a ação cabível é denominada ação de passagem forçada. Em reforço, pode-se dizer que a passagem forçada constitui uma servidão legal e obrigatória; ao contrário da servidão propriamente dita, que é convencional (TARTUCE, 2017, p. 236).

Destarte, o direito de passagem forçada pode ser exercido sem a concordância do vizinho que concederá a passagem, por ser um direito potestativo, por isso não sujeito à prescrição, cabendo ao mesmo o recebimento de indenização, observando que essa indenização levará em conta a diminuição de valor da propriedade pela passagem de terreno alheio e a moléstia por ela ocasionada. Independe de culpa e decorre simplesmente do direito de vizinhança.

Analisando o caput do art. 1.285 do Código Civil, observa-se que a taxatividade do exercício do direito a passagem forçada não se restringe àquele que não tem acesso à via pública, ou seja, ao imóvel absolutamente encravado. O Enunciado nº 88 do Conselho da Justiça Federal esclarece a temática:

O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica.

Ademais, sobre a responsabilidade civil por ato lícito na esfera pública, segundo Di Pietro (2019), a desapropriação é um procedimento administrativo que tem como “sujeito ativo” o Poder Público ou seus delegados. E é através de declaração de necessidade e utilidade pública ou interesse social que este impõe a um “sujeito passivo” (o proprietário da coisa), a perda de seu bem, substituindo a sua propriedade pelo equivalente em dinheiro, justa indenização.

A própria Constituição Federal estabelece que a desapropriação deva ser pautada na necessidade e utilidade pública ou interesse social, e deverá ser pago o valor justo em dinheiro de forma prévia (CF, art. 52, XXIV). É uma compensação ou indenização, em razão da perda da propriedade, e poderá ser paga também em títulos da dívida pública (CF, art. 182, § 4º, III). Dessa forma, se substitui a propriedade pela indenização (DI PIETRO 2019).

Ensina Ricardo Alexandre (2018) que a utilidade pública busca concretizar ações relacionadas à comodidade e utilidade ao coletivo, não tendo caráter de urgência. A sua implementação será na conveniência e oportunidade do interesse público. Há previsão no Decreto-Lei 3.365/1941, que disciplina e exemplifica alguns casos de declaração de utilidade pública (art. 5º). Conforme Marcelo Alexandrino:

 A necessidade pública decorre de situações de urgência ou de emergência, cuja solução exija a desapropriação do bem. Nas hipóteses de necessidade pública, faz-se necessária a transferência urgente de bens de terceiros para o Poder Público, ou para entidades por ele indicadas, a fim de que a situação emergencial seja resolvida satisfatoriamente. A expropriação imediata de imóvel para salvaguardar a segurança’ nacional, ou para fazer face a uma situação de calamidade pública, são hipóteses de desapropriação por necessidade pública (ALEXANDRINO, 2016, pág. 435).

De acordo com Meirelles:

A desapropriação por interesse social é aquela que se decreta para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar seu uso ao bem-estar social (Lei 4.132/62, art. 12). A primeira hipótese é privativa da União e específica da Reforma Agrária; a segunda é permitida a todas as entidades constitucionais – União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal e Territórios-, que têm a incumbência de adequar o uso da propriedade em geral às exigências da coletividade. Portanto, nos limites de sua competência, cada entidade estatal pode desapropriar por interesse social, desde que o objeto da expropriação e sua destinação se contenham na alçada da Administração expropriante (MEIRELLES, 2016, p. 836).

Sendo assim, pode-se observar que o dever de indenizar nos casos de desapropriação tem previsão na legislação e na Constituição Federal. O Estado, buscando o interesse público, desapropria o particular sem que este esteja praticando nenhum ato ilícito, pois nesse caso prevalece o interesse da coletividade sobre o privado, e dessa prática nasce o dever de indenização como uma exceção no ordenamento jurídico brasileiro já que a mesma, por regra, presume ato ilícito. 

3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO LÍCITO EM ESTADO DE NECESSIDADE, LEGÍSTIMA DEFESA E NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL

Conforme mencionado anteriormente, a obrigação de indenizar assenta-se na prática de um fato ilícito. É o caso, por exemplo, do motorista que tem de pagar as despesas médico-hospitalares da vítima que atropelou, por ter agido de forma imprudente. Em outros casos, entretanto, a obrigação de indenizar pode nascer de fatos permitidos por lei (lícitos). 

O estado de necessidade é um exemplo típico de conduta que, embora lícita, pode dar origem a um dever de reparação. O ato só será legítimo quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável à remoção do perigo.  Havendo excesso, tanto poderá estar configurado o abuso de direito (art. 187 do CC) quanto o ato ilícito propriamente dito (art. 186 do CC).

São dois os preceitos legais aplicáveis ao instituto do estado de necessidade de que merecem destaque, quais sejam:

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art.188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram (BRASIL,10.406, 2002).

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado (BRASIL,10.406, 2002).

De maneira a expor as críticas que são feitas acerca destes comandos legais na doutrina, merece ser transcrita as palavras de Daniel Ustárroz:

Por ora, o direito brasileiro não segue esta orientação, pois a pessoa que reage em estado de necessidade, ocasionando sem a sua colaboração, pela letra da lei indeniza, embora seja tão vítima quanto a outra pessoa lesionada para a sua salvação. Quem sabe, com o avançar dos anos, possa a sociedade concluir que é melhor socializar a responsabilidade pela reparação dos danos provocados em estado de necessidade, a fim de ser respeitado o instituto de conservação e, principalmente, entusiasmar os seus membros a salvar terceiros. Na lição de Francisco Pontes de Miranda, comentando precedente do direito português, se se beneficia toda uma cidade, a responsabilidade deveria ser de todos os habitantes. Seria o mais justo, embora contrário à interpretação literal de nossas normas (USTÁRROZ, 2012, p. 471).

Em relação à “legítima defesa”, somente a definida pelo Código Penal (Decreto-Lei n° 2.848/1940) como “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 194, art. 25), e praticada contra o agressor, impede a ação de ressarcimento de danos. Porém, por exemplo, se o agente, por erro de pontaria (aberratio ictus) atingir um terceiro inocente, ficará obrigado a indenizar os danos a este causados, tendo, em contrapartida, o direito à ação regressiva contra o injusto ofensor.

Já na “legítima defesa putativa” há um equívoco do “agredido”, que age precipitadamente.  Em suma, a pessoa pressente um perigo que, na realidade, não existe e, por isso, age imoderadamente, o que não exclui o dever de indenizar. Nesse sentido, há tempos vêm entendendo os nossos Tribunais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça:

Civil – Dano moral – Legítima defesa putativa. A legítima defesa putativa supõe negligência na apreciação dos fatos, e por isso não exclui a responsabilidade civil pelos danos que dela decorram. Recurso Especial conhecido e provido (STJ, REsp 513.891/RJ, Processo 2003/0032562-7, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 20.03.2007, DJU 16.04.2007, p. 181).

Civil – Indenização – Homicídio – Pensão – Dano moral – Julgamento extra petita – Impossibilidade de decisões contraditórias na espécie vertente – Ainda que admitida a tese de legítima defesa putativa, subsistiria a obrigação de reparar o dano, visto não ser caso de exclusão de ilicitude (STJ, REsp 47.246/RJ (9400119569), 3ª Turma, Rel. Min. Costa Leite, Data da decisão: 30.08.1994, DJ 27.03.1995, p. 7.157, RSTJ 71/343).

Por fim, nos casos de estrito cumprimento do dever legal, em que o agente é exonerado da responsabilidade pelos danos causados, a vítima, muitas vezes, consegue obter o ressarcimento do Estado, já que, nos termos do art. 37, § 6° da Constituição Federal, “as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”. Nesse caso, o Estado não terá ação regressiva contra o funcionário responsável (só cabível nos casos de culpa ou dolo), porque ele estará amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em primeiro plano, após analisarmos os aspectos gerais da responsabilidade civil e aprofundarmos a temática da responsabilização por ato lícito, é necessário que nos voltemos à problemática em questão para assim explicar de que forma a falta de enfoque doutrinário e acadêmico acerca da responsabilidade civil por ato lícito pode gerar prejuízos para o direito e para a resolução de conflitos da sociedade.

Como já observado durante a explanação anterior, nem sempre a responsabilização será advinda de um fato ilícito, e em ocasiões específicas, o fato gerador da responsabilidade poderá ser um fato lícito. Contudo, poucos autores se aprofundam nessa temática, o que, por vezes, pode vir a enfraquecer o aprendizado de acadêmicos que se apegam em doutrinas que não dão o devido foco ao tema.

Na maioria das vezes, a existência dessa modalidade da responsabilidade civil somente é citada. Nas doutrinas civilistas mais famosas, por exemplo, o assunto não é tão detalhado, fato preocupante visto que a doutrina é o primeiro contato complexo e profundo que os futuros aplicadores do direito terão com determinados temas.

O papel da doutrina na aplicação do Direito precisa ser efetivado de maneira detalhada e forte, porque é a partir de uma teorização adequada que a ciência do Direito se desenvolve e se renova.  Ademais, em um tema tão pouco abordado como a responsabilidade civil por ato lícito, a situação é ainda mais delicada dada a enorme importância do estatuto da responsabilização civil para o equilíbrio e correta aplicação da justiça.

 Quando um assunto de extrema relevância não é abordado da melhor forma nas doutrinas, cria-se um círculo vicioso que inicia-se no campo acadêmico e pode vir a desestruturar, mesmo que de maneira leve, a sociedade em busca de seus direitos. A partir de uma continuada valorização de discursos breves na doutrina, ocorre o impedimento do aperfeiçoamento da ciência do direito, visto que a aplicação do Direito caminha lado a lado com as fontes do direito, no caso em tela, com a doutrina.

Essa situação é complexa e se agrava a cada dia quando a própria doutrina passa a se contentar em apenas comentar superficialmente determinados temas, como no caso analisado neste trabalho, a responsabilização por ato lícito. Diante dessa conjuntura, faz-se indispensável o resgate do papel da doutrina na construção do Direito e, mais precisamente, na formação acadêmica de estudantes do direito.

Logo, é necessário refletir acerca da consequência que a breve explanação do tema na atual doutrina pode ter, uma vez que além de não cumprir efetivamente as suas funções, isso por vezes pode gerar um ciclo de desinformação na sociedade acadêmica, algo comprovado dado os poucos artigos que explanam bem sobre o tipo de responsabilidade civil analisado.

 A preocupação é urgente, uma vez que a falta de enfoque doutrinário e, por conseguinte, acadêmico, sobre o tema prejudica a participação da literatura jurídica em sua essencialidade na construção de uma doutrina forte e detalhada, assim como também influencia no aperfeiçoamento do direito, que fundamenta suas bases na correta aplicação para as normas e em uma equilibrada construção das fontes do direito, como a doutrina.

Ao se acomodar a uma posição de mera citadora de alguns temas, a doutrina desvaloriza-se, na sua função de interpretar e deturpa sua participação de fundamental importância, especialmente em um momento no qual a maiorias das doutrinas estão menos densas, na correta interpretação do direito.

 O Direito necessita ser abrangido a partir de um olhar participativo e integrador, que não se restrinja a discursos enxutos, fechados em si mesmos, frequentemente adotados em Estados que, somente aparentemente, se dizem democráticos. Não há, pois, incerteza de que à doutrina incumbe contribuir qualitativamente para o direito.

A doutrina ainda não se apercebeu de suas novas funções democráticas, cujos fundamentos não podem desconsiderar o Estado Democrático de Direito e a responsabilização civil em suas mais variadas formas. Estamos em outro momento que empurra a literatura jurídica para uma inovação que exige dela mais atuação.

 Ao recusar seu papel institucional, abre um espaço a ser ocupado possivelmente pelo Estado, que naturalmente pode se tornar discricionário e arbitrário. Quando não se detalha a responsabilidade civil por ato lícito, a doutrina não contribui, pois, da maneira mais completa, para a construção do Direito democrático.

Destarte, para evitar que a falta de enfoque doutrinário e acadêmico acerca da responsabilidade civil por ato lícito ocasione prejuízos para o direito e para a resolução de conflitos da sociedade, nos cabe provocar a doutrina e os doutrinadores a analisarem detalhadamente a responsabilidade civil e todas as mais variadas formas de aplicação desse instituto.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Ricardo; DE DEUS, João. Dir. Administrativo. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2018.

ALEXANDRINO, Marcelo; VICENTE, Paulo. Dir. Administrativo Descomplicado. 24ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2016.

BANDEIRA, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.365/1941, 21 de junho de 1941. Dispõe sobre as desapropriações por utilidade pública.

BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 5ª ed. Revista, aumentada e atualizada de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. 

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.

CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Lei da desapropriação: constituição de 1988 e leis ordinárias. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Dir. Administrativo. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2019.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de direito civil. volume único. São Paulo: Saraiva, 2017.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil: volume único. São Paulo: Saraiva, 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Volume 4. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇAVES, Carlos Roberto. Direito civil 3 esquematizado: responsabilidade civil , direito de família, direito das sucessões. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico:projetos de pesquisa/ pesquisa bibliográfica/ teses de doutorado, dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2018.

MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Dir. Administrativo brasileiro. 42ª ed. atual. até a Emenda Constitucional 90, de 15/09/2015. São Paulo: Malheiros, 2016.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 12ª ed. re., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

PRÁXIS: Revista do Instituto Luterano de Ensino Superior de Itumbiará/ Universidade Luterana do Brasil. 1 2001. Canoas: ed. Ulbra 2001.

SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. Direito civil: responsabilidade civil. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antônio. Direito Imobiliário: Teoria e Prática. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das Coisas. 9ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil: v. 2. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

TARTUCE, Flávio. Manual de responsabilidade civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade civil por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.