A responsabilidade civil por ato lícito na doutrina legal do Brasil

Por: Eleazar J. Isava – Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Roraima – UERR

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata sobre a responsabilidade civil por ato lícito. Como explica Carlos Roberto Gonçalves (2012), a responsabilidade civil nasce em decorrência de uma conduta que causa prejuízos a outrem, ou da simples inobediência a um preceito legal. Também Sergio Cavalieri Filho (2009, p. 2), argumenta: “responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico […], porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida”.

São apresentados aqui alguns dos múltiplos fatores estruturantes da responsabilidade civil, entre estes: as fontes, os elementos e o efeito de sua reparação. Será mostrado porque a principal função da responsabilidade civil é a reparação do dano, visando recuperar a estabilização moral e patrimonial daquele que foi afetado.

O artigo busca definir os seguintes elementos teóricos:

a) os aspectos gerais da responsabilidade civil;

b) os elementos da responsabilidade civil;

c) as causas excludentes da responsabilidade civil subjetiva;

d) a responsabilidade civil por atos lícitos;

e) a responsabilidade civil por ato lícito na esfera pública e;

d) a responsabilidade civil por ato lícito em estado de necessidade, legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal.

O problema que motiva e inspira esta pesquisa é querer saber como a falta de enfoque doutrinário e acadêmico, acerca da responsabilidade civil por ato lícito, gera prejuízos ao Direito, como ciência, e porque dificulta a resolução de conflitos sociais. Também, este estudo justifica-se, pelo fato de existir necessidade bibliográfica e referencial que explique melhor tudo o relacionado com a responsabilidade civil.

Este artigo tem suma relevância social, já que a sociedade é a principal beneficiada pelo crescimento de produções acadêmicas sobre o assunto. Anseia-se, dessa forma, promover o pensamento crítico do leitor acerca das concepções que existem sobre a matéria da responsabilidade civil. Pretende-se, dessa forma, contribuir com o aprimoramento da ciência do Direito, mediante a produção acadêmica, fortalecendo o conhecimento na área do Direito Civil.

A compreensão da responsabilidade civil por ato lícito é de grande relevância, considerando que a maioria dos autores tratam o tema em sentido inverso, isto é, falam mais sobre a responsabilidade civil por ato ilícito que por ato lícito, já que, aparentemente, uma é mais fácil de definir que a outra.

Para poder atingir as ideias propostas, este artigo tem como objetivo geral analisar, de forma genérica, os aspectos teóricos relacionados com a responsabilidade civil por ato lícito. Agora, quanto aos objetivos específicos, são considerados os seguintes pontos:

1.º) apresentar de forma simples a noção jurídica e os aspectos gerais da responsabilidade civil;

2.º) definir a temática da responsabilidade civil por atos lícitos, apresentando exemplos concretos que permitam ilustrar a matéria em pauta e;

3.º) mostrar por que e de que forma a falta de enfoque doutrinário e acadêmico, acerca da responsabilidade civil por ato lícito, gera prejuízos ao Direito e à resolução de conflitos da sociedade.

Quanto à metodologia da pesquisa, este artigo está sustentado na análise bibliográfica e referencial, incluindo artigos, doutrinas e legislação pertinentes. O objeto da pesquisa é a doutrina brasileira, no relativo à responsabilidade civil. Quanto à viabilidade da pesquisa, esta apresentou certas dificuldades para a coleta de informação, devido à existência de pouco material bibliográfico e doutrinário que tratem o assunto desde o ângulo do ato lícito da responsabilidade civil.

O método de estudo empregado neste artigo é o dedutivo. Neste sentido, Marconi e Lakatos (2018, p. 107) explicam que o método dedutivo “parte de teorias e leis para predizer a ocorrência dos fenômenos particulares”.

Estrutura-se o conhecimento através de uma cadeia de raciocínio, partindo de uma análise geral do fenômeno, no presente caso, a responsabilidade civil, passando por um estudo mais aprofundado da matéria, quer dizer, os atos lícitos, chegando, finalmente à resposta da dúvida em questão.

Portanto, esclarece-se nesta pesquisa de que forma a falta de enfoque doutrinário e acadêmico, acerca da responsabilidade civil por ato lícito, prejudica o Direito e porque interfere negativamente na resolução de conflitos da sociedade.

1. ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Antes de analisar o tema central da problemática do presente artigo, é necessário introduzir os pontos principais acerca da responsabilidade civil. Logo, para melhor compreensão do tema, devemos nos atentar ao significado do termo responsabilidade, que deriva do vocábulo verbal latino respondere, com o sentido de “responder”, “replicar”. 

Nesse respeito, entende-se por “responsabilidade” o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico. É a obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa; de ressarcir ou reparar danos ou prejuízos causados injustamente a outrem. Dada obrigação quase sempre acarreta um ônus ao agente do dano, mediante indenização que pode recair sobre o sujeito passivo da relação originária ou sobre algum terceiro (CAVALIERI FILHO, 2008).

A responsabilidade civil é decorrente da violação de um dever jurídico, que, na maioria das vezes, acarreta dano a outrem, gerando um novo dever jurídico: o de reparar o dano.  Assim, é fundamental analisar o disposto no Código Civil Brasileiro – CCB, a respeito do ato ilícito e a obrigação de indenizar. Sobre a função da responsabilidade civil, o prof. Sérgio Cavalieri Filho reflete:

O anseio de obrigar o agente, causador do dano, a repara-lo inspira-se no mais elementar sentimento de justiça. O dano causado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre o agente e a vítima, surgindo uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilíbrio, o que se procura fazer recolocando o prejudicado no “status quo ante” (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 12).

A responsabilidade civil atua na maioria das vezes a partir do ato ilícito, com o surgimento da obrigação de indenizar, com intuito de colocar a vítima no estado em que estaria, caso o fato não houvesse ocorrido (CAVALIERI FILHO, 2003). Todavia, nem sempre a responsabilização será advinda de um fato ilícito, em ocasiões específicas, o fato gerador da responsabilidade poderá ser um fato lícito. A lei, então, deve estabelecer a caracterização do fato gerador como ensejador ou não da responsabilização.

O art. 186 do Código Civil (Lei n° 10.406/2002) consagra uma regra universalmente aceita: a de que todo aquele que causa danos a outrem é obrigado a repará-lo. Estabelece o aludido dispositivo legal que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002, art. 186).

“Conduta” é a exteriorização da vontade humana. Deve ser voluntária, no sentido de ser controlável pela vontade do agente, sendo excluídos os atos praticados sob coação absoluta, em estado de inconsciência ou por provocação de fatos invencíveis como tempestades, naufrágios, terremotos, inundação etc. (GONÇALVES, 2012).         

“Dano” é a subtração ou a diminuição de um bem jurídico. O dano pode ser patrimonial ou moral, dependendo se tem como consequência a lesão a um bem corpóreo ou incorpóreo. O dano pode gerar um prejuízo material ou imaterial, a depender se a consequência está no patrimônio ou na esfera abstrata dos sentimentos (GONÇALVES, 2012).

O “dano material” se divide em prejuízo emergente e lucro cessante. “Prejuízo emergente” é o prejuízo diretamente advindo do fato delituoso; os lucros cessantes são as consequências econômicas decorrentes do dano. (GONÇALVES, 2012)

Dessa forma, ainda que haja violação de um dever jurídico, e ainda que tenha havido culpa, ou até mesmo dolo por parte do infrator, nenhuma indenização será devida uma vez que não se tenha verificado prejuízo a um terceiro (vítima). Para reforçar o pensamento, Sergio Cavalieri Filho salienta a importância do dano na Responsabilidade Civil:

O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil. Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano. Na responsabilidade objetiva, qualquer que seja a modalidade do risco que lhe sirva de fundamento — risco profissional, risco proveito, risco criado etc. —, o dano constitui o seu elemento preponderante. Tanto é assim que, sem dano, não haverá o que reparar, ainda que a conduta tenha sido culposa ou até dolosa (CAVALIERI FILHO, 2000, p. 70). 

Por outro lado, o nexo causal é uma relação de causa e efeito que liga determinada conduta a um determinado resultado. Sem ela, não existe a obrigação de indenizar. Se houve o dano, mas sua causa não está relacionada com o comportamento do agente, inexiste a relação de causalidade e a obrigação de indenizar. Citando Sergio Cavalieri Filho:

Não basta, portanto, que o agente tenha praticado uma conduta ilícita; tampouco que a vítima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente, que exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito. Em síntese, é necessário que o ato ilícito seja a causa do dano, que o prejuízo sofrido pela vítima seja resultado desse ato, sem o que a responsabilidade não correrá a cargo do autor material do fato. Daí a relevância do chamado nexo causal. Cuida-se, então, de saber que um determinado resultado é imputável ao agente; que relação deve existir entre o dano e o fato para que este, sob a ótica do Direito, possa ser considerado causa daquele (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 74).

Para Gustavo Tepedino e Gisela Sampaio, três são as teorias existentes mais discutidas quanto à determinação do nexo causal:

a) teoria da equivalência dos antecedentes (ou teoria sine qua non)

b) teoria da causalidade adequada e

c) teoria do dano direto e imediato

A “teoria da equivalência dos antecedentes” preconiza que qualquer pessoa ou fato direta ou indiretamente relacionado ao resultado adentra a cadeia causal. Dessa forma, pegando como exemplo uma batida entre dois veículos, o agente causador do fato seria responsabilizado pelo fato, assim como seus pais que o geraram, seus avôs que geraram os pais deste e assim sucessivamente.

Para a “teoria da causalidade adequada”, somente o fato ou os fatos relevantes para o evento danoso geram a responsabilidade civil e o consequente dever de reparar o dano. Utilizando o mesmo exemplo da batida entre os veículos, somente o agente causador do fato seria responsabilizado pelos danos causados.

A teoria da causalidade adequada parece ser a que mais prevalece no Brasil, a respeito do nexo de causalidade. Na teoria do dano direto e imediato, somente devem ser reparados os danos que decorrem de efeitos necessários da conduta do agente, admitindo-se que atos alheios, de terceiros ou da própria vítima, obstem o nexo de causalidade.

A “culpa” é a qualificação da conduta ilícita. Ressalta-se que a culpa não é um elemento da responsabilidade civil objetiva (ou aquiliana), que dispensa a verificação dela por parte do agente causador do fato danoso, estando presente apenas na responsabilidade civil subjetiva.

No direito civil, “culpa” significa por causa de. Assim, basta que alguém dê caso a algo, seja de forma voluntária, seja involuntária, para que tenha agido com culpa. Logo, culpa lato sensu (sentido amplo) é um gênero, da qual são espécies a culpa estricto sensu (sentido estrito) e o dolo.

“Culpa em sentido estrito” é o ato praticado sem os deveres objetivos de cuidado, tendo essa culpa como modalidades a Negligência (fazer menos do que deveria fazer), a Imprudência (fazer mais do que deveria fazer) ou Imperícia (ausência de técnica em arte, ofício ou profissão).

Nas palavras de Flávio Tartuce (2017, p. 521) “a culpa pode ser conceituada como o desrespeito a um dever preexistente, não havendo propriamente uma intenção de violar o dever jurídico, que acaba sendo violado por outro tipo de conduta”. O dolo seria o inverso, consistindo na vontade de cometer uma violação de direito; é a violação deliberada, consciente, intencional do dever jurídico.

2. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR ATOS LÍCITOS

O Código Civil Brasileiro apresenta algumas situações em que há a incidência de responsabilidade civil por ato lícito na esfera privada no que concerne aos direitos de vizinhança: Da passagem de cabos e tubulações, do direito de construir e da passagem forçada. Além disso, também explanaremos sobre a desapropriação, inserida na esfera pública.

O CC/2002, no que concerne aos direitos de vizinhança, protege ambas as partes. O art. 1.286 dispõe que, em casos em que for extremamente necessário a passagem de cabos e tubulações através do prédio vizinho, este será constrangido a aceitar tal atividade em sua propriedade, mediante indenização que venha a compensar a desvalorização da área.

Por outro lado, o Código Civil também concede ao proprietário prejudicado a faculdade de exigir que tais obras sejam realizadas de maneira menos danosa e de exigir que venha a ser executada com segurança. Diz o CC/2002: “Art. 1.287. Se as instalações oferecerem grave risco, será facultado ao proprietário do prédio onerado exigir a realização de obras de segurança”.

O vigente Código Civil/2002 classifica como um dos vários Direitos Reais a propriedade: “Art. 1.225. São direitos reais: I – a propriedade”. Assim também, a propriedade é tratada pela Constituição Federal como um direito fundamental.

No âmbito de direitos reais, mais precisamente no direito de construir, respaldado pelo CC/2002 em seu art. 1.313, podemos ter como exemplo um ato praticado dentro dos parâmetros legais, mas que, porventura, poderá acarretar a obrigação de ressarcimento.

O art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para:

I – dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório;

II – apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente (BRASIL,10.406, 2002).

O parágrafo 3º do art. 1.313 do CC/2002 assegura: “III – se do exercício direito assegurado neste artigo provier dano, terá o prejudicado direito ao ressarcimento” (BRASIL, Lei n. 10.406, 2002). Dessa forma, podemos compreender que a responsabilidade civil não está necessariamente interligada apenas a atos ilícitos. Como afirma Pablo Stolze & Pamplona Filho (2017, p. 878) “poderá haver responsabilidade civil sem necessariamente haver antijuridicidade, ainda que excepcionalmente, por força de norma legal”.

No caso da passagem forçada, ela tem fundamento no direito do proprietário de imóvel sem acesso à via pública. Este deve buscar acesso, seja constrangendo o vizinho a lhe conceder a passagem, seja por meio de pagamento de indenização, ou pela judicialização do caso, se for necessário. Segundo Stolze e Pamplona Filho:

No caso da passagem forçada, o dono do prédio encravado sem acesso à via pública, nascente ou porto, tem o direito de constranger o vizinho a lhe dar passagem, mediante o pagamento de indenização cabal (art. 1.285, CC/2002). Nesse caso, verifica-se que o vizinho constrangido poderá responsabilizar civilmente o beneficiário do caminho, exigindo a indenização cabível, mediante o ajuizamento de ação ordinária, se não houver solução amigável (Stolze e Pamplona Filho, 2017, p. 79).

 O mencionado instituto possui expressa previsão legal no art. 1.285, do Código Civil vigente:

Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.

§ 1º Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem.

§ 2º Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a passagem.

§ 3º Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra (BRASIL, 10.406, 2002).

Como podemos ver na transcrição do diploma legal acima, no capítulo V do Código Civil, que versa sobre o direito de vizinhança, fica claro o interesse social do instituto, especialmente pela hermenêutica constitucional que preconiza a “função social da propriedade”. Isto é resultado da fundamentação de que não pode um prédio perder a sua finalidade e valor econômico por ausência de acesso à via pública.

Nesse sentido, é importante esclarecer a diferença entre a “servidão” – que é um direito real sobre coisa alheia – e a “passagem forçada” – que é uma limitação ao direito de propriedade que decorre do interesse público do direito de vizinhança, logo, uma imposição da solidariedade entre os vizinhos.

Sobre o assunto, esclarece Luiz Antônio Scavone Filho:

Não se trata de servidão, que é um direito real sobre coisa alheia em razão de negócio jurídico e comodidade do imóvel dominante. Diferente disso, a passagem forçada é limitação ao direito de propriedade, decorrência das normas que tratam da vizinhança e de decisão judicial, sempre pelo modo menos gravoso (SCAVONE FILHO, 2012, p. 805).

Flávio Tartuce segue o seguinte raciocínio:

A encerrar o presente tópico, cumpre confrontar a servidão com institutos afins. Inicialmente, repise-se que a servidão não se confunde com a passagem forçada. A servidão é facultativa, não sendo obrigatório o pagamento de uma indenização. A passagem forçada é compulsória, assim como é o pagamento da indenização. A servidão é direito real de gozo ou fruição. A passagem forçada é instituto de direito de vizinhança, presente somente na situação em que o imóvel encravado não tem saída para a via pública (art. 1.285 do CC/2002).

A servidão envolve os imóveis dominante e serviente; na passagem forçada estão presentes o imóvel encravado e o serviente. Na servidão cabe a citada ação confessória; na passagem forçada, para a defesa do direito, a ação cabível é denominada ação de passagem forçada. Em reforço, pode-se dizer que a passagem forçada constitui uma servidão legal e obrigatória; ao contrário da servidão propriamente dita, que é convencional (TARTUCE, 2017, p. 236).

Destarte, o direito de passagem forçada pode ser exercido sem a concordância do vizinho que concederá a passagem, por ser um direito potestativo, por isso não sujeito à prescrição, cabendo ao mesmo o recebimento de indenização, observando que essa indenização levará em conta a diminuição de valor da propriedade pela passagem de terreno alheio e a moléstia por ela ocasionada. Independe de culpa e decorre simplesmente do direito de vizinhança.

Analisando o caput do art. 1.285 do Código Civil, observa-se que a taxatividade do exercício do direito a passagem forçada não se restringe àquele que não tem acesso à via pública, ou seja, ao imóvel absolutamente encravado. O Enunciado nº 88 do Conselho da Justiça Federal esclarece a temática:

O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica.

Ademais, sobre a responsabilidade civil por ato lícito na esfera pública, segundo Di Pietro (2019), a desapropriação é um procedimento administrativo que tem como “sujeito ativo” o Poder Público ou seus delegados. E é através de declaração de necessidade e utilidade pública ou interesse social que este impõe a um “sujeito passivo” (o proprietário da coisa), a perda de seu bem, substituindo a sua propriedade pelo equivalente em dinheiro, justa indenização.

A própria Constituição Federal estabelece que a desapropriação deva ser pautada na necessidade e utilidade pública ou interesse social, e deverá ser pago o valor justo em dinheiro de forma prévia (CF, art. 52, XXIV). É uma compensação ou indenização, em razão da perda da propriedade, e poderá ser paga também em títulos da dívida pública (CF, art. 182, § 4º, III). Dessa forma, se substitui a propriedade pela indenização (DI PIETRO 2019).

Ensina Ricardo Alexandre (2018) que a utilidade pública busca concretizar ações relacionadas à comodidade e utilidade ao coletivo, não tendo caráter de urgência. A sua implementação será na conveniência e oportunidade do interesse público. Há previsão no Decreto-Lei 3.365/1941, que disciplina e exemplifica alguns casos de declaração de utilidade pública (art. 5º). Conforme Marcelo Alexandrino:

 A necessidade pública decorre de situações de urgência ou de emergência, cuja solução exija a desapropriação do bem. Nas hipóteses de necessidade pública, faz-se necessária a transferência urgente de bens de terceiros para o Poder Público, ou para entidades por ele indicadas, a fim de que a situação emergencial seja resolvida satisfatoriamente. A expropriação imediata de imóvel para salvaguardar a segurança’ nacional, ou para fazer face a uma situação de calamidade pública, são hipóteses de desapropriação por necessidade pública (ALEXANDRINO, 2016, pág. 435).

De acordo com Meirelles:

A desapropriação por interesse social é aquela que se decreta para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar seu uso ao bem-estar social (Lei 4.132/62, art. 12). A primeira hipótese é privativa da União e específica da Reforma Agrária; a segunda é permitida a todas as entidades constitucionais – União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal e Territórios-, que têm a incumbência de adequar o uso da propriedade em geral às exigências da coletividade. Portanto, nos limites de sua competência, cada entidade estatal pode desapropriar por interesse social, desde que o objeto da expropriação e sua destinação se contenham na alçada da Administração expropriante (MEIRELLES, 2016, p. 836).

Sendo assim, pode-se observar que o dever de indenizar nos casos de desapropriação tem previsão na legislação e na Constituição Federal. O Estado, buscando o interesse público, desapropria o particular sem que este esteja praticando nenhum ato ilícito, pois nesse caso prevalece o interesse da coletividade sobre o privado, e dessa prática nasce o dever de indenização como uma exceção no ordenamento jurídico brasileiro já que a mesma, por regra, presume ato ilícito. 

3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO LÍCITO EM ESTADO DE NECESSIDADE, LEGÍSTIMA DEFESA E NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL

Conforme mencionado anteriormente, a obrigação de indenizar assenta-se na prática de um fato ilícito. É o caso, por exemplo, do motorista que tem de pagar as despesas médico-hospitalares da vítima que atropelou, por ter agido de forma imprudente. Em outros casos, entretanto, a obrigação de indenizar pode nascer de fatos permitidos por lei (lícitos). 

O estado de necessidade é um exemplo típico de conduta que, embora lícita, pode dar origem a um dever de reparação. O ato só será legítimo quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável à remoção do perigo.  Havendo excesso, tanto poderá estar configurado o abuso de direito (art. 187 do CC) quanto o ato ilícito propriamente dito (art. 186 do CC).

São dois os preceitos legais aplicáveis ao instituto do estado de necessidade de que merecem destaque, quais sejam:

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art.188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram (BRASIL,10.406, 2002).

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado (BRASIL,10.406, 2002).

De maneira a expor as críticas que são feitas acerca destes comandos legais na doutrina, merece ser transcrita as palavras de Daniel Ustárroz:

Por ora, o direito brasileiro não segue esta orientação, pois a pessoa que reage em estado de necessidade, ocasionando sem a sua colaboração, pela letra da lei indeniza, embora seja tão vítima quanto a outra pessoa lesionada para a sua salvação. Quem sabe, com o avançar dos anos, possa a sociedade concluir que é melhor socializar a responsabilidade pela reparação dos danos provocados em estado de necessidade, a fim de ser respeitado o instituto de conservação e, principalmente, entusiasmar os seus membros a salvar terceiros. Na lição de Francisco Pontes de Miranda, comentando precedente do direito português, se se beneficia toda uma cidade, a responsabilidade deveria ser de todos os habitantes. Seria o mais justo, embora contrário à interpretação literal de nossas normas (USTÁRROZ, 2012, p. 471).

Em relação à “legítima defesa”, somente a definida pelo Código Penal (Decreto-Lei n° 2.848/1940) como “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 194, art. 25), e praticada contra o agressor, impede a ação de ressarcimento de danos. Porém, por exemplo, se o agente, por erro de pontaria (aberratio ictus) atingir um terceiro inocente, ficará obrigado a indenizar os danos a este causados, tendo, em contrapartida, o direito à ação regressiva contra o injusto ofensor.

Já na “legítima defesa putativa” há um equívoco do “agredido”, que age precipitadamente.  Em suma, a pessoa pressente um perigo que, na realidade, não existe e, por isso, age imoderadamente, o que não exclui o dever de indenizar. Nesse sentido, há tempos vêm entendendo os nossos Tribunais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça:

Civil – Dano moral – Legítima defesa putativa. A legítima defesa putativa supõe negligência na apreciação dos fatos, e por isso não exclui a responsabilidade civil pelos danos que dela decorram. Recurso Especial conhecido e provido (STJ, REsp 513.891/RJ, Processo 2003/0032562-7, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 20.03.2007, DJU 16.04.2007, p. 181).

Civil – Indenização – Homicídio – Pensão – Dano moral – Julgamento extra petita – Impossibilidade de decisões contraditórias na espécie vertente – Ainda que admitida a tese de legítima defesa putativa, subsistiria a obrigação de reparar o dano, visto não ser caso de exclusão de ilicitude (STJ, REsp 47.246/RJ (9400119569), 3ª Turma, Rel. Min. Costa Leite, Data da decisão: 30.08.1994, DJ 27.03.1995, p. 7.157, RSTJ 71/343).

Por fim, nos casos de estrito cumprimento do dever legal, em que o agente é exonerado da responsabilidade pelos danos causados, a vítima, muitas vezes, consegue obter o ressarcimento do Estado, já que, nos termos do art. 37, § 6° da Constituição Federal, “as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”. Nesse caso, o Estado não terá ação regressiva contra o funcionário responsável (só cabível nos casos de culpa ou dolo), porque ele estará amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em primeiro plano, após analisarmos os aspectos gerais da responsabilidade civil e aprofundarmos a temática da responsabilização por ato lícito, é necessário que nos voltemos à problemática em questão para assim explicar de que forma a falta de enfoque doutrinário e acadêmico acerca da responsabilidade civil por ato lícito pode gerar prejuízos para o direito e para a resolução de conflitos da sociedade.

Como já observado durante a explanação anterior, nem sempre a responsabilização será advinda de um fato ilícito, e em ocasiões específicas, o fato gerador da responsabilidade poderá ser um fato lícito. Contudo, poucos autores se aprofundam nessa temática, o que, por vezes, pode vir a enfraquecer o aprendizado de acadêmicos que se apegam em doutrinas que não dão o devido foco ao tema.

Na maioria das vezes, a existência dessa modalidade da responsabilidade civil somente é citada. Nas doutrinas civilistas mais famosas, por exemplo, o assunto não é tão detalhado, fato preocupante visto que a doutrina é o primeiro contato complexo e profundo que os futuros aplicadores do direito terão com determinados temas.

O papel da doutrina na aplicação do Direito precisa ser efetivado de maneira detalhada e forte, porque é a partir de uma teorização adequada que a ciência do Direito se desenvolve e se renova.  Ademais, em um tema tão pouco abordado como a responsabilidade civil por ato lícito, a situação é ainda mais delicada dada a enorme importância do estatuto da responsabilização civil para o equilíbrio e correta aplicação da justiça.

 Quando um assunto de extrema relevância não é abordado da melhor forma nas doutrinas, cria-se um círculo vicioso que inicia-se no campo acadêmico e pode vir a desestruturar, mesmo que de maneira leve, a sociedade em busca de seus direitos. A partir de uma continuada valorização de discursos breves na doutrina, ocorre o impedimento do aperfeiçoamento da ciência do direito, visto que a aplicação do Direito caminha lado a lado com as fontes do direito, no caso em tela, com a doutrina.

Essa situação é complexa e se agrava a cada dia quando a própria doutrina passa a se contentar em apenas comentar superficialmente determinados temas, como no caso analisado neste trabalho, a responsabilização por ato lícito. Diante dessa conjuntura, faz-se indispensável o resgate do papel da doutrina na construção do Direito e, mais precisamente, na formação acadêmica de estudantes do direito.

Logo, é necessário refletir acerca da consequência que a breve explanação do tema na atual doutrina pode ter, uma vez que além de não cumprir efetivamente as suas funções, isso por vezes pode gerar um ciclo de desinformação na sociedade acadêmica, algo comprovado dado os poucos artigos que explanam bem sobre o tipo de responsabilidade civil analisado.

 A preocupação é urgente, uma vez que a falta de enfoque doutrinário e, por conseguinte, acadêmico, sobre o tema prejudica a participação da literatura jurídica em sua essencialidade na construção de uma doutrina forte e detalhada, assim como também influencia no aperfeiçoamento do direito, que fundamenta suas bases na correta aplicação para as normas e em uma equilibrada construção das fontes do direito, como a doutrina.

Ao se acomodar a uma posição de mera citadora de alguns temas, a doutrina desvaloriza-se, na sua função de interpretar e deturpa sua participação de fundamental importância, especialmente em um momento no qual a maiorias das doutrinas estão menos densas, na correta interpretação do direito.

 O Direito necessita ser abrangido a partir de um olhar participativo e integrador, que não se restrinja a discursos enxutos, fechados em si mesmos, frequentemente adotados em Estados que, somente aparentemente, se dizem democráticos. Não há, pois, incerteza de que à doutrina incumbe contribuir qualitativamente para o direito.

A doutrina ainda não se apercebeu de suas novas funções democráticas, cujos fundamentos não podem desconsiderar o Estado Democrático de Direito e a responsabilização civil em suas mais variadas formas. Estamos em outro momento que empurra a literatura jurídica para uma inovação que exige dela mais atuação.

 Ao recusar seu papel institucional, abre um espaço a ser ocupado possivelmente pelo Estado, que naturalmente pode se tornar discricionário e arbitrário. Quando não se detalha a responsabilidade civil por ato lícito, a doutrina não contribui, pois, da maneira mais completa, para a construção do Direito democrático.

Destarte, para evitar que a falta de enfoque doutrinário e acadêmico acerca da responsabilidade civil por ato lícito ocasione prejuízos para o direito e para a resolução de conflitos da sociedade, nos cabe provocar a doutrina e os doutrinadores a analisarem detalhadamente a responsabilidade civil e todas as mais variadas formas de aplicação desse instituto.

REFERÊNCIAS

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Dir. Administrativo. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2019.

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

Podem as autoridades e os servidores públicos receber presentes?

Reproduzimos aqui a opinião profissional de Vladimir Passos de Freitas, desembargador aposentado, publicado em revista especializada, tratando de explicar este dilema ético, apresentado no seu artigo “Os imprecisos limites do recebimento de presentes por autoridades”.

Presentear um Servidor Público
Pode um servidor público ser presenteado? Foto: http://qifinanceiro.com.br/

As investigações sobre o destino dos presentes recebidos pelo ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, trazem ao conhecimento público um dos temas menos tratados pela comunidade jurídica. Assim, revela-se oportuna uma análise da matéria, deixando claro, desde logo, que não se trata de avaliação da conduta do ex-presidente, mas sim considerações de ordem genérica e com o foco voltado para as profissões jurídicas, em especial a magistratura.

As formas de alcançar-se tal objetivo são em número igual ao da criatividade humana. Facilidades como auxiliar na busca de um imóvel para alugar ou na compra de um automóvel a bom preço. Presentes, que podem ir de uma garrafa de vinho de baixo preço até uma joia valiosíssima. Apoio em uma situação de doença em família ou emprego para um filho sem muita vocação para o trabalho.

Entre o sim e o não da autoridade ou de um servidor menos graduado, mas nem por isso com menor poder na prática (v.g., um escrivão de Polícia ou um funcionário de Cartório Judicial), há uma zona intermediária, cinzenta, que desperta dúvidas. Vejamos os extremos.

Imagine-se que em pequena comarca do interior uma mulher, grata à juíza que promoveu sua reconciliação com o marido, dá-lhe de presente um artesanal e apetitoso queijo meia cura. Nada de mal há neste gesto e não o aceitar seria um ato exagerado. Coisa diversa seria um juiz receber de um advogado com várias ações na sua Vara, as chaves de um luxuoso apartamento mobiliado em Miami, para lá passar, gratuitamente, suas férias com a família.

Às vezes a situação não é tão clara. Suponha-se que a secretaria (ou cartório) de uma Vara Judicial estatizada tenha enormes dificuldades orçamentárias e péssima estrutura de trabalho. Um advogado que nela atua oferece em doação um moderno e caro computador, com impressora e acessórios. Será esta ação legítima? Deve ser aceito o presente? Rejeitado?

Para a solução das múltiplas dúvidas que surgem é preciso regramento. Não dá para esperar que cada um resolva com base no seu critério subjetivo, pois as decisões variam conforme a pessoa. Regramento significa lei, decreto ou ato administrativo, sendo que este último tem vantagem sobre os demais, porque pode ir se adaptando às mudanças da sociedade. Vejamos como o Brasil vem tratando a questão.

Para o Poder Executivo, a Lei 8.394, de 1991, dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. O artigo 6º, inciso I, dispõe como primeiro objetivo o de preservar a memória presidencial como um todo num conjunto integrado, compreendendo os acervos privados arquivísticos, bibliográficos e museológicos.

A redação é clara quanto à preservação de documentos para fixação da memória do período de presidência, mas omissa quanto aos presentes ou vantagens de qualquer espécie.

Foi o Decreto 4.081, de 2002, que instituiu o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República, que avançou na matéria. Nele está disposto que:

Art. 10.  É vedado ao agente público, na relação com parte interessada não pertencente à   Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou de organismo internacional de que o Brasil participe:

II – receber presente, transporte, hospedagem, compensação ou quaisquer favores, assim como aceitar convites para almoços, jantares, festas e outros eventos sociais;

Mais adiante, no parágrafo 1º, esclarece que não se consideram presentes os brindes que não tenham valor comercial ou sejam distribuídos de forma generalizada por entidades de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos especiais ou datas comemorativas, desde que não ultrapassem o valor de R$ 100.

Para dar as diretrizes, atender as consultas dos interessados e propor sanções administrativas, foi criado o Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, através do Decreto 6.029, de 2007, vinculado à Casa Civil. Em novo e importante passo, a Comissão de Ética Pública baixou a Resolução 3, de 2000, disciplinando quando é proibido e quando é permitido aceitar presentes.

Assim, por exemplo, o item 1, inciso II, veda o recebimento de presentes quando haja     interesse pessoal, profissional ou empresarial em decisão que possa ser tomada pela autoridade, individualmente ou de caráter coletivo, em razão do cargo. Já o item 2, inciso II, admite o recebimento quando ofertados por autoridade estrangeira, nos casos protocolares em que houver reciprocidade ou em razão do exercício de funções diplomáticas. No item 3 indica-se o destino a ser dado, conforme o caso, aos presentes recebidos, podendo ser o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, entidade de caráter assistencial ou filantrópico reconhecida como de utilidade pública ou simplesmente incorporado ao patrimônio da entidade ou do órgão público.

No âmbito do Poder Judiciário, o Código de Ética da Magistratura Nacional, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, estabelece no artigo 17 que é dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional. Este dispositivo vincula todos os magistrados brasileiros, exceto os ministros do Supremo Tribunal Federal, porque estes não estão subordinados ao CNJ.

O STF editou um Código de Ética para os seus servidores, através da Resolução 246, de 2002. Portanto, seus ministros não estão sujeitos a ele. No artigo 15 proíbe-se o recebimento de presentes de valor superior a R$ 100,00 e, quando não puderem ser recusados ou devolvidos, serão doados a entidades de caráter filantrópico ou cultural. O Tribunal de Constas da União também possui um Código de Ética para os seus servidores, objeto da Resolução nº 226, de 2009.

O Ministério Público não tem Código de Ética para os seus agentes. O Conselheiro Adilson Gurgel de Castro, em 17 de abril de 2012, formulou proposta de Resolução neste sentido, todavia ela, até o momento, não foi acolhida.

De todo o exposto, o que se percebe é um vazio normativo e o que é pior, um absoluto desconhecimento e interesse pelos critérios de razoabilidade no recebimento de presentes. Neste negativo vácuo surgem inúmeras dúvidas em que, muitas vezes, não se sabe o que pode e o que não pode ser feito.

Neste quadro, o que se tem a fazer é pautar-se pelo bom senso e aplicar-se, por analogia, Decretos e Resoluções de outros Poderes ou mesmo de outros Tribunais. Sempre tendo em mente que Código de Ética não é lei e, por isso, não pode criar ilícitos administrativos, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da legalidade.

Por exemplo, se a Resolução do CNJ não atribui valor a um presente que venha a ser oferecido a um magistrado, o correto será aplicar-se, por analogia, o Decreto 4.081, de 2002, fixando-o na quantia máxima de R$ 100. Já um livro doado por um autor também não deve ser recusado, ainda que ultrapasse este valor, porque se trata de um trabalho intelectual e que, se presume, terá utilidade.

Em suma, a bajulação e a entrega de presentes às autoridades sempre esteve presente na vida nacional. Todavia, no atual estágio de conscientização da sociedade brasileira, é chegada a hora de pôr o assunto às claras, seja debatendo-o com realismo, seja apontando-o quando existente, a fim de que seja coibido.

De: Vladimir Passos de Freitas

 é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

Revista Consultor Jurídico.

Os destaques são nossos.

A deontologia e seu significado

Deontologia é uma filosofia que faz parte da filosofia moral contemporânea, que significa ciência do dever e da obrigação.

A deontologia é um tratado dos deveres e da moral. É uma teoria sobre as escolhas dos indivíduos, o que é moralmente necessário e serve para nortear o que realmente deve ser feito.

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O termo deontologia foi criado no ano de 1834, pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, para falar sobre o ramo da ética em que o objeto de estudo é o fundamento do dever e das normas. A deontologia é ainda conhecida como “Teoria do Dever”.

Immanuel Kant também deu sua contribuição para a deontologia, uma vez que a dividiu em dois conceitos: razão prática e liberdade.

Para Kant, agir por dever é a maneira de dar à ação o seu valor moral; e por sua vez, a perfeição moral só pode ser atingida por uma livre vontade.

A deontologia também pode ser o conjunto de princípios e regras de conduta ou deveres de uma determinada profissão, ou seja, cada profissional deve ter a sua deontologia própria para regular o exercício da profissão, e de acordo com o Código de Ética de sua categoria.

Para os profissionais, deontologia são normas estabelecidas não pela moral e sim para a correção de suas intenções, ações, direitos, deveres e princípios.

O primeiro Código de Deontologia foi feito na área da medicina, nos Estados Unidos.

Deontologia jurídica

A deontologia jurídica é a ciência que se preocupa em cuidar dos deveres e dos direitos dos profissionais que trabalham com a justiça.

Advogados, juízes, desembargadores e etc, são alguns exemplos de profissionais abrangidos pela deontologia jurídica. 

Veja este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=P0hYT9aRkc8

Tomado de: https://www.significados.com.br/deontologia/

Aspectos éticos-legais da confidencialidade e privacidade na relação médico-paciente

Confidencialidade Médico - Paciente
A relação de privacidade e confidencialidade entre o médico e o paciente é de extrema importância (Foto: http://meuprontuario.net).

RESUMO: O sigilo médico está bem consagrado na legislação brasileira, sendo considerado um dos direitos universais dos indivíduos e um dos mais importantes elementos, se não o principal, na relação médico-paciente. Na classe médica, é visto como um dos conceitos e componentes que definem a estrutura da profissão médico-assistencial.

Neste sentido, é importante considerar a validade do denominado “juramento hipocrático”, de grande transcendência ética-moral na esfera da medicina e da saúde em geral e que tem séculos de vigência. Por outro lado, os pacientes enfrentam diariamente situações que comprometem sua privacidade e moralidade.

O fato dos pacientes entrarem em contato com os especialistas da saúde e revelarem suas particularidades exige paciência, sigilo e respeito por parte dos profissionais, seja por motivos particulares ou por causa das informações confidenciais dos pacientes. Lembrando que o paciente está numa condição de aparente “inferioridade” ou “indefensabilidade” perante os outros, devido as condições de saúde em que se encontra.

Este estudo trata de demonstrar de modo genérico os direitos e deveres dos médicos e pacientes, desde a perspectiva do Direito Civil e da Teoria Geral do Processo. Procura-se abraçar especialmente a causa do paciente, que muitas vezes é deixada de lado ou se lhe da menor importância que aos direitos dos médicos e profissionais da saúde em geral. Palavras chaves: Direito Civil; Teoria Geral do Processo; Sigilo Médico e Profissional.

A CONFIDENCIALIDADE PROFISSIONAL

A confidencialidade é definida como a qualidade daquilo que é confidencial (que se diz ou que se faz com confiança e com segurança recíproca entre dois ou mais indivíduos). Trata-se de uma propriedade da informação que pretende garantir o acesso unicamente às pessoas autorizadas”[1]. Desde tempos primórdios, a confidencialidade constitui um dos preceitos morais mais destacados da profissão médica. Ainda hoje, continua sendo assunto extremamente atual e, em muitos casos, controvertido, polêmico.

Pelo conceito, fica claro que a profissão médica enfrenta um grande dilema na hora de exercer esta obrigação ética-profissional. Em geral, pode-se ver que os profissionais da área médica e da saúde procuram velar cuidadosamente dos ritos exigidos pela profissão. Dessa forma, não é teoricamente complicado para um médico, por exemplo, entender que dele se exige confidencialidade das informações obtidas nos centros médicos, laboratórios, postos de saúde, etc.

Neste sentido, o juramento hipocrático ilumina os sistemas éticos, morais e legais. O juramento hipocrático se desanexa dizendo: “Aquilo que, no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto” (Hipócrates, 460-351 a.C.). Ou como falou o professor Flámino Fávero (1959): “O segredo é o principal esteio da ética médica. Vamos mantê-lo o mais e o melhor que nos seja permitido”.

Conforme a legislação vigente, as informações proporcionadas pelos pacientes, como consequência do atendimento médico (seja numa clínica, hospital o centro de saúde específico), são de sua propriedade, portanto, devem ser manipulados considerando os valores éticos que modelam sua utilização.

Durante muito tempo pensou-se que essas informações eram propriedade exclusiva do médico assistente ou da instituição. Hoje em dia, essa visão é considerada antiquada e improfícua.  Por causa desse entendimento pretérito, deu-se origem a termos técnicos como “prontuário médico” e “arquivo médico”. Uma revisão desses protótipos exige atualizar o entendimento. Continuar lendo “Aspectos éticos-legais da confidencialidade e privacidade na relação médico-paciente”

Aspectos gerais da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB

LINDB
Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro
 
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-lei nº 4.657, de 1942, também conhecida como lex legum, é uma sobrenorma do ordenamento jurídico pátrio. Esta norma vem regulamentar as fontes do direito, a aplicação das leis no tempo e no espaço, bem como sua interpretação. Lex legum– significa conjunto de normas sobre normas.
 
 A Lei de Introdução não é parte integrante do Código Civil, constituindo tão somente uma lei anexa para tornar possível uma mais fácil aplicação das leis. Estende-se muito além do Código Civil, por abranger princípios determinativos da aplicabilidade das normas, questões de hermenêutica jurídica relativas ao direito privado e ao direito público e por conter normas de direito internacional privado.
 
A Lei de Introdução é autônoma ou independente, tendo-se em vista que seus artigos têm numeração própria. Não é uma lei introdutória ao Código Civil. Se o fosse conteria apenas normas de direito privado comum e, além disso, qualquer alteração do Código Civil refletiria diretamente sobre ela. Por tal razão, a revogação do Código Civil, de 1916, nela não refletiu. A Lei de Introdução continua vigente e eficaz. Na verdade, é uma lei de introdução às leis, por conter princípios gerais sobre as normas sem qualquer discriminação.
 
As principais características da LINDB são: 
– é um conjunto de normas sobre normas, pois, é uma lei que disciplina outras normas jurídicas, assinalando-lhes a maneira de aplicação e entendimento, sendo chamada de lei das leis (lex legum);
– é aplicável a todos os ramos do direito, não apenas ao Direito Civil; e por ultrapassar em muito o âmbito do Direito Civil, podemos afirmar que os dispositivos deste diploma legal contém normas de sobredireito.
LINDB:
– conjunto de normas sobre normas;
– disciplina outras normas jurídicas;
– lei das leis (Lex legum);
– é aplicável a a todos os ramos do direito;
– contém normas de sobredireito; e
– não é parte integrante do Código
 
A lei de introdução trata dos seguintes assuntos:
I – Vigência e eficácia das normas jurídicas;
II – Conflitos da lei no tempo e no espaço;
III – Dos critérios de hermenêutica (é a ciência que trata da interpretação das leis);
IV – Mecanismos de integração do ordenamento jurídico (analogia, costumes, princípios gerais do direito e equidade);
V – Normas de direito internacional privado.

Defeitos ou vícios do negócio jurídico

1. CLASSIFICAÇÃO DOS VÍCIOS DO NEGÓCIO JURÍDICO

É de vital importância o estudo dos defeitos do negócio jurídico, vícios que maculam o ato jurídico celebrado, atingindo a sua vontade ou gerando uma repercussão social, tornando o negócio passível de ação anulatória ou declaratória de nulidade pelo prejudicado ou interessado.

Nunca se deve confundir os vícios do negócio jurídico com os vícios redibitórios ou vícios do produto. Os vícios do negócio atingem os negócios jurídicos em geral, mas especificamente a manifestação da vontade ou a órbita social. Os vícios redibitórios atingem os contratos, particularmente o objeto de uma disposição patrimonial.

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2. DO ERRO E DA IGNORÂNCIA

O erro é um engano fático, uma falsa noção, em relação a uma pessoa, ao objeto do negócio ou a um direito, que acomete a vontade de uma das partes que celebrou o negócio jurídico. O art. 138 do CC indica que os negócios jurídicos celebrados com erro são anuláveis, desde que o erro seja substancial, podendo ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias em que o negócio foi celebrado.

O art. 138 do CC não mais interessa se o erro é escusável (justificável) ou não. Isso porque foi adotado pelo comando legal o princípio da confiança. Na sistemática do atual CC está valorizada a eticidade, motivos pelo qual, presente a falsa noção relevante, merecerá a negociação a nulidade. O erro merece o mesmo tratamento legal da ignorância, que é um desconhecimento total quanto ao objeto do negócio. Os casos são tratados pela lei como sinônimos, equiparados.

No erro e na ignorância, a pessoa engana-se sozinha, parcial ou totalmente, sendo anulável o negócio toda vez que o erro ou a ignorância for substancial ou essencial, nos termos do art. 139 do CC.

a) Interessar à natureza do negócio (erro in negotia), ao objeto principal da declaração (erro in corpore), ou a alguma das qualidades a ele essenciais (erro in substantia). Ex. compra de bijuteria imaginando que se trata de ouro.
b) Disser respeito à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante (erro quanto à pessoa ou erro in persona). Ex. ignorar um vício comportamental de alguém, celebrar o casamento com essa pessoa.
c) Constituir erro de direito e não implicar em recusa à aplicação da lei, sendo o motivo único ou a causa principal do negócio jurídico (erro de direito ou erro iuris).
d) O art. 142 do CC considera o erro acidental que não gera a nulidade do negócio jurídico, já que não atinge o plano de sua validade. Ao contrário do erro essencial, no erro acidental o contrato é celebrado mesmo sendo conhecido pelos contratantes.

3. DO DOLO

O dolo pode ser conceituado como sendo o artifício ardiloso empregado para enganar alguém, com intuito de benefício próprio. O dolo é a arma do estelionatário. O art. 145 do CC indica que o negócio praticado com dolo é anulável, no caso de ser o mesmo a causa. Esse dolo, causa do negócio jurídico, é conceituado como dolo essencial, substancial ou principal (dolus causam).

a) Dolo essencial (substancial ou principal): uma das partes do negócio usa de artifícios maliciosos, para levar a outra a praticar um ato que não praticaria normalmente, visando a obter vantagem, geralmente com vista ao enriquecimento sem causa.

a) Dolo de responsabilidade civil: não está relacionado com um negócio jurídico, não gerando qualquer anulabilidade; se atingir um negócio jurídico, gera somente o dever de pagar perdas e danos, devendo ser tratado como dolo acidental (art. 1466 CC).

b) Dolo de vício do negócio: está relacionado com o negócio jurídico, sendo a única causa de sua celebração (dolo essencial); sendo um ato, causará a sua anulabilidade, nos termos do art. 171 do CC, desde que proposta ação no prazo de 4 anos da celebração do negócio jurídico, pelo interessado.

c) Dolo de terceiro: acontece se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento. Caso contrário, ainda que válido o negócio jurídico, o terceiro responderá pelas perdas e danos causados. Podem se dar duas circunstâncias:

a. Se a parte a que se aproveitou tinha ciência > o negócio é anulável
b. Se a parte a que se aproveitou não tinha ciência > o negócio não é anulável, mas o lesado pode pedir perdas e danos ao autor do dolo

d) Dolo do representante legal: o dolo do representante legal só obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve. Mas se o dolo for do representante convencional, o representado responderá solidariamente com ele por perdas e danos (art. 932 do CC).

I. Dolo quanto ao conteúdo

a. Dolo bom (dolus bônus): pode ser concebido em dois sentidos. Inicialmente, é o dolo tolerável, aceito inclusive nos meios comerciais. São os exageros feitos pelos comerciantes ou vendedores em relação às qualidades de um bem ou serviço que está sendo vendido, mas que não detenha tudo isso. O negócio presente neste tipo de dolo não é anulável.

b. Dolo mau (dolus malus): consiste em ações astuciosas ou maliciosas com o objetivo de enganar alguém e lhe causar prejuízo. No dolo mau, o negócio jurídico pode ser anulado se houver prejuízo ao induzido e beneficiado ao autor do dolo ou a terceiros. (ar. 37 do CDC).

II. Dolo quanto à conduta das partes:

a. Dolo positivo (ou comissivo): é o dolo praticado por ação (conduta positiva). Ex. a publicidade enganosa por ação, como na compra de um carro.

b. Dolo negativo (ou omissivo): é o dolo praticado por omissão (conduta negativa), situação em que um dos negociantes ou contrastantes é prejudicado. Também é conhecido por reticência acidental ou omissão dolosa. Ex. vendas de apartamentos decorados, em que não se revela ao comprador que os móveis são feitos sobre medida, induzindo-o a erro (publicidade enganosa por erro).

c. Dolo recíproco ou bilateral: é a situação em que ambas as partes agem dolosamente, um tentando prejudicar o outro mediante o emprego de artifícios ardilosos.

4. DA COAÇÃO

A coação pode ser conceituada como sendo uma pressão física ou moral exercida sobre o negociante, visando obriga-lo a assumir uma obrigação que não lhe interessa. Aquele que exerce a coação é denominado de coator e o que a sofre de coato, coagido ou paciente (art. 151 do CC).

A coação é classificada em:

A. Coação física (vis absoluta): é o constrangimento corporal que retira toda capacidade de manifestação de vontade, implicando ausência total de consentimento, acarretando nulidade do ato. A nulidade absoluta está justificada porque a situação de coação física faz com que a pessoa se enquadre na previsão do art. 3 do CC., como alguém que por causa transitória não pode exprimir sua vontade.

B. Coação moral ou psicológica (vis compulsiva): coação efetiva e presente, causa fundado temor de dano iminente e considerável à pessoa do negociante, à sua família, à pessoa próxima aos seus bens, gerando a anulabilidade do ato (art. 151 e 152 CC). No julgado, o juiz deve considerar elementos como o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente, e todas as outras circunstâncias envolvidas.

5. DO ESTADO DE PERIGO

O estado de perigo constitui uma forma especial de coação. Não deve ser confundido com a coação moral (art. 156 do CC). Haverá estado de perigo todas vez que o próprio negociante, pessoa de sua família ou amigo próximo estiver em perigo, conhecido da outra parte, sendo este a única causa para a celebração do negócio. O juiz decidirá segundo as circunstâncias fáticas e regras de razão (ontognoseologia jurídica de Reale).
No estado de perigo, o negociante temeroso de grave dano ou prejuízo acaba celebrando o negócio, mediante uma prestação exorbitante, presente a onerosidade excessiva (elementos objetivo).

Estado de perigo = Situação de perigo conhecido da outra parte (elemento subjetivo) + onerosidade excessiva (elemento objetivo)

No estado de perigo, o negócio jurídico é anulável (art. 171 e 178 do CC). O juiz deverá revisar o negócio para poder decidir. Com a revisão, procura-se manter a validade do negócio, considerando o “princípio da conservação contratual”. A equidade e a boa fé são essenciais e devem acompanhar o juiz no momento de determinar ou não a configuração do estado de perigo. Ex. um sequestro e os negócios escuros por trás.

6. DA LESÃO

Conforme o art. 157 do CC ocorre a lesão quando a pessoa, sobre premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta, considerando o princípio de operabilidade ou simplicidade. Tem-se a lesão como sendo um vício que acomete a vontade ou o consentimento. O instituto da lesão visa proteger o contratante que se encontra em posição de inferioridade, ante o prejuízo por ele sofrido na conclusão do contrato, devido à desproporção existente entre as prestações das duas partes.

Lesão = Premente necessidade ou inexperiência (elemento subjetivo) + onerosidade excessiva (elemento objetivo)

O conceito de premente necessidade é genérico e depende de apreciação pelo aplicador da norma.

7. DA FRAUDE CONTRA CREDORES

Constitui fraude contra credores a atuação maliciosa do devedor, em estado de insolvência ou na iminência de assim se tornar, dispondo de maneira gratuita ou onerosa o seu patrimônio, para afastar a possibilidade de responder os seus bens por obrigações assumidas em momento anterior à transmissão.

Ex. Se o senhor X tem conhecimento da iminência de vencimento de dívida em 23/08, em relação a vários credores, vende ao senhor Y um imóvel de seu patrimônio, havendo conhecimento do estado de insolvência e da impossibilidade de transferir dita propriedade que se encontra comprometido. Neste caso, estará sendo configurado o denominado vício social do negócio jurídico.

O art. 158 do CC regula este aspecto, incluindo várias hipóteses de remissão ou perdão da dívida, estando caraterizado o ato fraudulento toda vez que o devedor estiver insolvente ou beirando à insolvência. Em tais circunstâncias, cabe ação anulatória por parte dos credores quirografários eventualmente prejudicados. Para entrar com ação, a lei dispõe de um período de 4 anos.

 

Ref.

  • AQUINO, Leonardo Gomes de. Defeitos do negócio jurídico. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3504, 3 fev. 2013. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/23603&gt;. Acesso em: 18 jun. 2016.
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  • GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 19ªed. atualizado por Reginalda Paranhos de Brito e Edvaldo Brito. São Paulo: Forense, 2007.
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  • VENOSA, Silvio Salvo. Direito Civil. 12ª Ed. São Apulo: Atlas, 2012. V.1.

 

 

Teoria Geral do Negócio Jurídico

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1. FATOS E ATOS DO NEGÓCIO JURÍDICO

1.1 Fato: significa qualquer ocorrência que interessa ou não ao Direito, ao âmbito jurídico. Dentre desse mundo surgem os fatos não jurídicos (que nos interessam como objeto de estudo) e os fatos jurídicos (qualquer ocorrência com repercussão para o Direito) > fatos com repercussões jurídicas. Os fatos jurídicos são divididos em: fatos naturais e fatos humanos.

1.2 Fato jurídico stricto sensu

Fato jurídico natural: é aquele que independe da atuação humana, podendo ser entendido também como fato jurídico stritu sensu.

a. Fato jurídico natural ordinário: é o evento natural previsível e comum de ocorrer, como é caso da morte, do nascimento, do decurso do prazo, da prescrição e da decadência. Este fato sofre muita interferência do elemento “tempo”.

b. Fato jurídico natural extraordinário: é o evento decorrente da natureza, como o caso fortuito (evento imprevisível) ou a força maior (evento previsível, mas inevitável ou irresistível), como acontece com uma enchente acometendo uma cidade do interior de Roraima, onde não é comum, mas que termina acontecendo por causa dos efeitos naturais imprevisíveis.

1.3 Fato jurídico humano ou fato jurígeno: é o fato onde intervêm a presença da vontade humana (elemento volitivo), incluindo os atos lícitos e os ilícitos.

a. Fato jurídico lícito (ato jurídico lato sensu)

  • Negócio jurídico
  • Ato jurídico Strito sensu

b. Fato jurídico ilícito

  • Penal
  • Administrativo
  • Cívil

2. ATO JURÍDICO

a) Ato jurídico em sentido amplo ou lato sensu

  • Ato jurídico em sentido estrito (ou ato jurídico stricto sensu): configura-se quando houver objetivo de mera realização da vontade do titular de um determinado direito, não havendo a criação de instituto jurídico próprio para regular os direitos e deveres, muito menos composição de vontade entre as partes envolvidas. Os efeitos da manifestação de vontade estão predeterminados pela lei.
  • Negócio jurídico: é o fato jurídico, com elemento volitivo qualificado, cujo conteúdo seja lícito, visando a regular os direitos e deveres específicos de acordo com os interesses das partes envolvidas. Diante de uma composição de vontade de partes, que dita a existência de efeitos, há a criação de um instituto jurídico próprio, visando regular os direitos e deveres. Constitui o principal exercício da autonomia privada, da liberdade negocial. É o todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que todo o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide.

Alguns autores defendem a existência do denominado ato-fato jurídicos, um fato jurídico qualificado por uma atuação humana, por uma vontade não relevante juridicamente. Os atos reais ou atos naturais se separam da natureza e da psique. Nos atos reais, a vontade não é elemento do suporte fático.

Também está o ato-fato jurídico: pode ser enquadrado no conceito de fato jurídico, não no ato jurídico stritu sensu, muito menos no negócio jurídico. O ato-fato jurídico é mutante, metamorfo ou nômade. Ex. uma criança que compra um chocolate num supermercado. O ato praticado pela criança pode ser considerado como um ato juridicamente irrelevante.

b) Ato ilícito: é a conduta voluntária ou involuntária que está em desacordo com o ordenamento jurídico. O ilícito pode ser penal, administrativo ou civil, havendo independência entre essas três esferas, o que pode ser percebido pela leitura da primeira parte do art. 935 do CC (“a responsabilidade civil independe da criminal”). Essa independência não é absoluta, mas relativa, pois uma conduta pode influir nas três órbitas, como ocorre num acidente de trânsito ou no dano ambiental. O ato ilícito é fato jurígeno, por causa da presença ou vontade humana, mas não constitui um ato jurídico em sentido pleno.

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